Mas,
como disse Darcy Ribeiro, Deus é tão treteiro, faz as coisas de forma tão
recôndita e sofisticada, que ainda precisamos desvelar as obviedades do óbvio.
O óbvio se esconde. É ladino.
Foto
STF do ConJur
Muita
gente me perguntou por que fizemos o jantar em favor da nossa Suprema Corte em
São Paulo, semana passada. Bom, o manifesto é autoexplicativo.
Todavia,
havia que deixar o manifesto mais claro para os presentes e também para a mídia
que lá estava em peso cobrindo o evento. Designado mestre de cerimônias pela
organização do grupo Prerrogativas, responsável pela noite (os incansáveis
Marco Aurélio Carvalho à frente, ao lado de Márcio Chaer, Bruno Sales, Gabriela
Araujo, Rittiene Podval, Fabiano da Silva Santos, Roberto Podval, Fábio Tofic e
tantos outros — o grupo tem mais de duzentos membros), lembrei-me de um
episódio da Guerra dos Farrapos que poderia ajudar a explicar o nosso
manifesto e resolvi recordá-lo, fazendo-o também em homenagem ao ministro
Nelson Jobim — gaúcho da cepa que lá estava, ao lado de pessoas dos mais
variados matizes ideológicos, como Ives Gandra, Tércio Sampaio Ferraz Jr., tanta
gente que seria impossível nominá-los nesta coluna (destaque-se também a
presença de ministros do STJ, o Corregedor Nacional do CNJ,
ministro Noronha, conselheiros do CNJ, presidentes de entidades como
Ajufe, Associação Nacional que congrega as Defensorias Públicas, e o ministro
Gilmar Mendes). Vejam aqui. Quatro oradores, além do ministro Dias Toffoli,
abrilhantando, de forma plural, a noitada: Misabel Derzi, Ives Gandra, Felipe
Santa Cruz e Alberto Toron. Fosse um painel, o título seria: Constituição,
Supremas Cortes e Democracia.
Sigo.
Para falar do prometido.
Em
1840, no meio da guerra, o general Rosas, ditador argentino, ofereceu tropas,
casa, comida e roupa lavada para o exército farroupilha, com o objetivo de,
juntos — argentinos e farrapos – derrotarem o Império.
E
o general David Canabarro, então líder da revolução Farroupilha, mandou-lhe uma
carta, dizendo:
“Senhor:
o primeiro de vossos soldados que transpuser a fronteira fornecerá o sangue com
que assinaremos a paz com os imperiais. Acima de nosso amor à República está
nosso brio de brasileiros. Se a separação for a esse custo, preferimos a
integridade com o Império. Vossos homens, se ousarem invadir nosso país,
encontrarão, ombro a ombro, os republicanos de Piratini e os monarquistas do
Sr. Dom Pedro II.”
Disse
eu então lá no evento:
Do
mesmo modo, respondemos nós, aqui presentes, Senhor Presidente do Supremo
Tribunal Federal, parafraseando o General David Canabarro, que
—
Podemos ter sérias críticas e divergências com relação ao tratamento dado pelo
Supremo Tribunal a questão da presunção da inocência;
—
Podemos ter sérias críticas ao fato de que o STF já deveria ter decidido de há
muito as ADC 44 e 54 e ainda não o fez;
—
Podemos ter críticas às restrições ao habeas corpus, em um país que possui
mais de 300 mil presos provisórios, dezenas de milhares dos quais em delegacias
de polícia e em prisões tipo masmorras medievais, como um antecessor seu já
disse de antanho;
—
Podemos ter críticas e divergências com a nossa Suprema Corte quando esta faz
juízos morais e parte dela quer ser vanguarda iluminista e empurrar a história;
—
Podemos ter críticas e divergências com a nossa Suprema Corte quando decide com
base na voz das ruas, esquecendo seu papel contramajoritário;
—
Podemos ter críticas e divergências quando o STF pratica ativismos e passa ao
largo dos limites semânticos da Constituição.
Mas,
porém, contudo, todavia, Senhor Presidente de nosso Tribunal Maior da República
brasileira, assim como já dissera David Canabarro em resposta ao ditador Rosas,
podemos ter nossas críticas ao STF, só que o primeiro detrator, o primeiro que
fez ou vier a fazer Contempt of Court, será enfrentado por todos nós
aqui presentes e iremos arregimentar forças ombro a ombro nessa imensa
comunidade jurídica de mais de um milhão de “soldados”.
Então,
senhor presidente Ministro Dias Toffoli:
Acima
de nossas críticas ao STF está nosso brio de juristas democratas. Não lutamos
por mais de vinte anos para restabelecer a democracia e construir uma
Constituição democrática — talvez a mais democrática do mundo — para, agora na
democracia, entregarmo-nos para grupos e grupelhos, institucionalizados ou não,
que querem fragilizar e, quiçá, aniquilar a Suprema Corte e, consequentemente,
o Estado de Direito.
Respondemos
aos detratores como David Canabarro respondeu ao ditador Rosas:
O
primeiro que atacar a Suprema Corte brasileira servirá como exemplo de nosso
brio por lutar pela democracia. As canetas Mont Blanc e as
canetas Bic que os detratores usam para escrever seus discursos de
ódio contra a Suprema Corte serão por nós utilizadas para assinarmos novos e
novos manifestos a favor da força institucional da Suprema Corte brasileira.
Enfim,
essa foi a nossa intenção com o manifesto e o jantar. E acho que fizemos bem.
Não há democracia sem um Tribunal que guarde o conteúdo da Constituição. Parece
óbvio isso. Mas, como disse Darcy Ribeiro, Deus é tão treteiro, faz as coisas
de forma tão recôndita e sofisticada, que ainda precisamos desvelar as
obviedades do óbvio. O óbvio se esconde. É ladino.
Em
próxima coluna, mostrarei como Tolstoi ajudou a iluminar o evento — já na
abertura —, e como foi minha adaptação de um famoso conto de grande escritor
russo, encaixando-o no âmbito das neocavernas pós-modernas que fomentam
pós-verdades (quer dizer, mentiras).
Post
scriptum: Convite. Hoje, quinta-feira (9/5), 18h30, estarei no 9º Andar do
Prédio da OAB, dentro da cidade do Rio de Janeiro, para, junto com o grande
jurista espanhol Calvo Gonzales, juntos falarmos sobre Processo, Constituição e
Decisão, com fortes pitadas de literatura. Aqui!
Lenio Luiz
Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito.
Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
GGN
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