Lula
foi vítima do próprio sucesso. De um lado, ganhou uma força política imbatível.
Sem perspectivas de conquistar a presidência, a oposição passou a conspirar. De
outro lado, incensado mundialmente, confiou desmedidamente na sua intuição
política e republicanamente desarmou-se.
O
Brasil vive o seu maior desafio como nação. Nos últimos anos houve uma
hecatombe institucional cujos maiores responsáveis foram os grupos de mídia e o
Supremo Tribunal Federal. Em uma disputa selvagem por poder, foram jogadas fora
todas as conquistas da Constituição de 1988, desmontou-se o modelo político,
destruíram-se as maiores fontes geradoras de emprego, desmontaram-se as
políticas sociais, educacionais, científico-tecnológicas e matou-se
provisoriamente o futuro, uma destruição iniciada no interinato de Michel Temer
e consumada no governo Jair Bolsonaro.
Os
historiadores, cientistas políticos, talvez consigam explicar, no futuro, o que
levou uma nação ao suicídio.
PARTIDOS
POLÍTICOS
Tudo
começou quando um partido de esquerda, o PT, movimentou-se para o
centro-esquerda, a social-democracia. Tinha como trunfo instrumentos da
social-democracia que faltavam ao antigo aspirante, o PSDB, como sindicatos,
movimentos sociais e um líder popular de expressão. E foi bem sucedido em suas
políticas sociais, apesar da oposição infame da mídia.
Por
seu lado, a financeirização empreendida no governo Fernando Henrique Cardoso, a
morte de lideranças históricas, como Mario Covas e André Franco Montoro, a
ascensão de duas lideranças inescrupulosas, como José Serra e Aécio Neves, e de
uma liderança medíocre, como Geraldo Alckmin, afastaram cada vez mais o PSDB de
qualquer veleidade programática. Sob FHC, Aécio e Serra, principalmente quando
a popularidade de Lula bateu recordes, o PSDB tornou-se cada vez mais um
partido com uma única bandeira: o “delenda PT”.
MÍDIA
Simultaneamente,
os grupos de mídia entram em violenta crise econômica e, sem estratégia para
enfrentar a quebra de barreiras representada pelos novos meios de comunicação,
resolveram ganhar protagonismo político: “nós somos a verdadeira oposição”,
dizia Roberto Civita, o pai do modelo. Teve início um período de jornalismo de
esgoto, uma arma de guerra que estuprou todos os princípios jornalísticos,
democráticos, plantou o ódio e contaminou irreversivelmente a democracia
brasileira.
SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL
Com
suas armas preferidas – os ataques aos recalcitrantes e lisonja aos que
aderiram – a mídia passou a monitorar as ações do Supremo, processo acentuado
pela imprudência dos julgamentos televisionados e pela transformação de
Ministros em celebridades.
Ministros
dignos foram submetidos a escrachos; ministros indignos a aplausos televisivos;
Ministros medíocres saudados como grandes poetas ou frasistas. E, com cenoura e
chicote, o Supremo foi se moldando aos novos tempos de incúria.
Tinha-se,
portanto, um partido que trocou a social-democracia pelo discurso de ódio, uma
mídia que pretendia se tornar poder político para se salvar, e um Supremo
passando a atuar sem os limites impostos pela Constituição.
Mas
não ficou nisso. O vírus inicial espalhou-se por todos os poros da República.
AS
CORPORAÇÕES PÚBLICAS
As
profissões de elite do setor público voltaram a ser prestigiadas com
salários elevados. A nova elite do funcionalismo abdica da função de servidor
público para assumir o espírito dos CEO de mercado. Como CEOs públicos, puderam
frequentar cursos superiores, cursar MBAs, ganharam bolsas de suas instituições
para estudar fora. Agora, queriam seu naco de poder.
Essa
onda de protagonismo foi se espalhando pelo setor civil armado do Estado, as
corporações com poder da caneta. O aprimoramento dos sistemas de controle, com
o Tribunal de Contas da União, Controladoria Geral da União, Ministério Público
Federal, criou entidades de poderes ilimitados, especialmente depois que a
campanha em torno da Lava Jato oficializou a máxima de todo poder aos Catões.
Com
o vácuo institucional, até as Forças Armadas entraram no jogo, através do seu
comandante, general Villas Boas.
O
PT
O
julgamento do “mensalão” marcou o início desse jogo macabro, de falsificação
diária de notícias, de fabricação diuturna de escândalos e de manipulação de
provas.
Lula
venceu a primeira rodada de golpe com a maneira como enfrentou a crise de 2008,
que alçou-o à condição de político mais popular do planeta.
Durante
algum tempo o país ressuscitou a auto-estima dos tempos de JK. O modo de ser
brasileiro, as políticas sociais, o soft power, a liderança diplomática sobre
os países do sul, o avanço diplomático-econômico na África, Oriente Médio, o
sucesso do etanol e do agronegócio, a mediação de conflitos no Oriente Médio,
tudo apontava para o nascimento de uma nova Nação.
Lula
foi vítima do próprio sucesso. De um lado, ganhou força política imbatível. Sem
perspectivas de conquistar a presidência, a oposição passou a acelerar a
conspiração. De outro lado, incensado mundialmente, confiou desmedidamente na
sua intuição política e desarmou-se. Descuidou-se nas indicações para Ministros
do Supremo e abriu mão de qualquer tentativa de influenciar até
poderes sob responsabilidade da Presidência – como a Polícia Federal, a
indicação do Procurador Geral da República. Foi terrivelmente imprudente na
negociação de cargos na Petrobras.
Mais
que isso, cometeu dois erros fatais: na indicação da sua sucessão e
ao abrir mão de concorrer nas eleições de 2014.
O
caos
Aberto
o caminho do vale-tudo, a partir da campanha do “mensalão” todos os pecados
foram permitidos. Ministros do Supremo Tribunal Federal concordaram em
participar de armações grosseiras sobre grampos, Ministros que assumiram como
legalistas se encantaram com a nova onda, jogaram a Constituição no lixo e
saíram rodando a baiana. Tudo isso perante um governo petista desarmado, inepto
para enfrentar as disputas do poder.
Qualquer
bobagem era motivo para explosões de escândalo de baixíssimo nível –
quinquilharias, como a tapioca comprada com cartão corporativo, o perfil da
jornalista alterado na Wikipédia, até factóides óbvios, como invasão das FARCs,
dólares em garrafas de rum e outras obscenidades que marcaram para sempre a
mídia brasileira.
O
suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina foi a síntese
macabra das libações da Justiça, obra conjunta de uma delegada da Polícia
Federal, um procurador do Ministério Público Federal, uma juíza da Justiça
Federal, da Controladoria Geral da República.
Até
hoje, uma imprensa invertebrada, medrosa, foi incapaz de conferir ao episódio a
gravidade de que se revestia, para não atrapalhar a estratégia do “delenda quem
pensar diferente” ou simplesmente para não ir contra a onda.
Quando
sobreveio a queda nas cotações de commodities, perdendo-se o bônus
político dado pela economia, o país estava nas mãos honestas, sinceras, mas
inexperientes e auto-suficientes de Dilma Rousseff.
Não
houve condições de reorganizar a resistência política.
E
agora, José? A noite chegou, o monstro surgiu, o custo dessa irresponsabilidade
pode ser contabilizado no próprio número de mortes evitáveis do Covid, frutos
do negacionismo do Frankenstein político que emergiu do cemitério em que foram
enterradas as instituições e as esperanças de construir uma Nação digna.
O
que se terá daqui para frente?
Os
responsáveis pela destruição institucional e econômica
Moro,
Dallagnol, setoristas da Lava Jato, colunistas de ódio, Eduardo Cunha e seu
grupo político foram apenas coadjuvantes, os germes oportunistas em um
organismo enfraquecido pela atuação dos responsáveis maiores.
O
duro recomeço passará por alguns desafios complexos.
PEÇA
1 – O CARÁTER NACIONAL
A
crise atual serviu para expor uma das piores heranças culturais do país: o
chamado racismo estrutural.
Mas
há um outro componente pouco estudado, talvez primo-irmão, o caráter das elites
brasileiras e dos setores que ambicionam um lugar na chamada Casa Grande.
A
maneira como mídia, Supremo, políticos, corporações públicas ingressaram no
golpismo mais explícito, sem a menor preocupação com a imagem ou, melhor,
regozijando-se com sua imagem refletida no esgoto, é um fenômeno típico de
sociedades sem caráter.
Tenho
a impressão de que a necessidade de se identificar com as classes altas seja um
resquício da República Velha, na qual as classes de baixo, para se defenderem
dos abusos da Justiça e do poder, tinham que se abrigar sob as asas de algum
coronel local.
Essa
submissão, por sua vez, gerava um sentimento de onipotência quando, por alguma
razão, o cidadão normal, através de estudos passava a cumprir o papel de
jagunço letrado, tornando-se defensor das demandas da classe superior junto às
instituições de Estado – em uma função de jornalista, juiz ou Ministro do
Supremo. Aí havia o deslumbramento total, dos que supunham ter conseguido
a inclusão por cima.
Some-se
o fato de uma sociedade historicamente permissiva, que permitia a convivência
com traficantes de escravos, bicheiros, doleiros, desde que bem-sucedidos
financeiramente. Grandes doleiros, contrabandistas, são aceitos com
naturalidade nas sociedades do Rio ou de Brasilia, e confraternizam-se com
autoridades no paraíso tropical de Miami.
Esse
talvez seja o motivo por que, na guerra jurídico-midiática-política mais suja
da história, não tenha ocorrido sequer as chamadas objeções de consciência como
impeditivo. Por tal, entenda-se a atitude do motorista de um trator, que
recebeu a ordem de destruir as casas de famílias sem terra. Ele se negou a
cometer a crueldade. Recorreu à chamada objeção de consciência.
Nada
disso se viu no período em que o ódio foi plantado, cevado e colhido. Não houve
objeção de consciência por parte dos principais agentes da conspiração e sequer
um mínimo de pudor, aquela pequena vergonha que acomete até as mentes
mais insensíveis, quando flagradas em grandes malfeitos.
Em
países com caráter, quem aderisse ao golpismo seria mal visto ao menos por sua
categoria. Uma mídia com caráter denunciaria desvios de condutas, exporia os
oportunistas, os excessivamente ambiciosos, os crimes cometidos pelos guardiões
da lei.
Nada
ocorreu. Pelo contrário, os bárbaros foram celebrados, houve pruridos da mídia
até em divulgar o suicídio do reitor da UFSC.
Este
foi o Brasil da década de 2010.
Por
outro lado, começa a surgir uma onda de liberalização relativa, impulsionada
pelos ventos externos. Alguns dos principais responsáveis pelo envenenamento
político anterior ressurgem como baluartes da democracia – e nada lhes é
cobrado, nem um mínimo de autocrítica.
Por
tudo isso, nada espere desse aggiornamento liberal dos porta-vozes
dos homens de bens, nem mesmo com as novas ondas que se propagam pelo mundo
civilizado, como reação à barbárie da era Trump.
O
país sem caráter só se submete a contingências de ordem política e é reativo a
movimentos de opinião pública. Jamais assumirá o protagonismo da defesa da
civilização.
Portanto,
movimentos virtuosos que vierem a surgir, serão externos a esses personagens
centrais do golpe.
PEÇA
2 – A MÍDIA
A
guerra cultural inicial em 2005 criou uma geração de jornalistas assustados,
enquadrados. Não os culpe. Passou a ser pré-condição para seguir carreira.
Agora,
começa a haver uma pequena reação de algumas cabeças mais independentes, no
pequeno espaço aberto por alguns veículos que perceberam que jornalistas
com caráter próprio são peças centrais na credibilidade do veículo como um
todo. Mas esse tipo de jornalista com luz própria ainda é minoria e pisa em
ovos.
Além
disso, o liberalismo midiático vai até o limite Lula. Persistem todas as
idiossincrasias do período anterior, substituindo os assassinatos de reputação
pela invisibilização. E tudo isso em um momento em que o mercado de opinião foi
pulverizado por bolhas de todas as cores, tirando definitivamente da mídia o
papel de mediadora central das discussões nacionais.
A
grande contribuição da mídia será refrear o jornalismo de esgoto do período
anterior e deixar de aspirar a ser partido político.
Aliás,
os editoriais de hoje da Folha e do Estadão escancaram a estreiteza de visão,
em relação à maior crise política da história.
PEÇA
3 – O SISTEMA DE JUSTIÇA
Hoje
em dia, o sistema de Justiça lembra os exércitos confederados depois da guerra
da Secessão, grupos andando pelas estradas e fuzilando quem passe pela frente,
adversários, transeuntes, pouco importando. Bastava não vestir uniformes cor de
cinza.
Primeiro
foi a Lava Jato impulsionando o protagonismo político do Judiciário. Depois, o
liberou geral de alguns tribunais, estimulando o lawfare judicial contra
supostos adversários políticos.
Há
em curso, também, uma guerra mundial interna no Judiciário.
A
Procuradoria Geral da República monta uma ofensiva contra o juiz Marcelo Bretas
e a Lava Jato Rio. Para se defender, ambos acertam uma operação que mira filhos
de ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Antes disso, a Lava
Jato de Curitiba se valeu de suas ligações internacionais ilegais para tentar
provas contra Ministros do Supremo.
Nessa
frente, o fim da Lava Jato é um refresco, mesmo deixando indevassáveis vários
porões dos tribunais superiores.
No
Supremo, a entrada de um Ministro garantista, ainda que indicado por Bolsonaro,
traz esperanças de uma pacificação da corte e da Justiça em geral. Mesmo
porque, os batedores de 1a instância, que vão na linha de frente fuzilando
adversários, jogando bombas nos inimigos, representam ameaças efetivas ao
próprio conceito de hierarquia jurídica.
Além
disso, o fim da onda punitivista faz com que Ministros-que-seguem-ondas, como
Luís Roberto Barroso, passem a cavalgar outras ondas, desinteressando-se da
guerra nada santa contra os garantistas do Supremo.
Não
espere nenhuma contribuição do Supremo – e da Justiça – a um pacto
civilizatório de envergadura. Mas, também, não será mais um protagonista
político, limitando-se a convalidar as políticas econômicas de desmonte das
redes de proteção social votadas pelo Congresso. O que não é pouco.
PEÇA
4 – AS FORÇAS ARMADAS
Hoje
em dia as Forças Armadas estão irreversivelmente ligadas à imagem do governo
Bolsonaro. Os erros dos generais de Bolsonaro na questão de energia, especialmente
na Saúde, na articulação política, a apatia ante a liberação de armas, a
aceitação pacífica da oferta abundante de empregos na área civil, fez com que
as Forças Armadas brasileiras tivessem seu momento Malvinas.
Não
se verá mais atitudes como a do general Villas Boas que, com um mero twitter,
ajudou a consolidar o golpe jurídico-parlamentar. Mas será um enorme desafio
desalojar os militares do enorme mercado de trabalho criado na área civil e nas
escolas militares.
De
qualquer modo, apesar da excelência dos institutos militares de tecnologia, não
espere das Forças Armadas nenhuma contribuição à ideia de pacto ou projeto
nacional. Seu papel no desenvolvimento industrial, desde as políticas
industriais dos anos 30 ao desenvolvimento da indústria aeronáutica e do
enriquecimento de urânio, são apenas retratos na parede. Hoje, o que viceja é o
padrão Pazuello.
PEÇA
5 – OS PARTIDOS POLÍTICOS
O
sistema partidário foi triturado. Hoje em dia, o jogo político se dá em torno
de dois movimentos:
Liberalismo
selvagem – movimento que junta o MMS – Mídia, Mercado e Supremo. Seu
objetivo maior é sancionar o desmonte final do Estado. Todos seus movimentos
ocorrem na validação dos negócios da privatização, do desmonte das políticas
sociais, mas com um olho em 2022. É o que mantém Bolsonaro imune, apesar de
todos os descalabros que comete. Sua aposta é em Luciano Huck, apesar dos
esforços de João Dória Jr em se habilitar.
Progressistas –
há uma corrente progressista presente nos movimentos sociais e em várias
categorias profissionais. Hoje em dia, há os economistas pela democracia, os
juízes, os procuradores e os policiais antifascistas. Mas não há um ponto de
organização para essas demandas.
Espinha
dorsal do petismo, o sindicalismo foi fuzilado a partir do interinato de Temer.
Mesmo antes, jamais conseguiu sair das bolhas corporativas. E o PT não
conseguiu se arejar para repetir o papel dos anos 80, do grande ônibus
abrigando movimentos sociais de toda espécie.
Lula
mantém-se como a grande liderança, mas sem as condições de articulação de
antes. Caso semelhante ocorreu com Getúlio Vargas quando retornou do exílio
interno e se tornou novamente presidente. As circunstâncias eram outras, os
atores eram outros e ele não conseguiu se mover com a mesma desenvoltura política
de antes.
Por
outro lado, movimentos auspiciosos que estavam se formando – como a frente dos
governadores do Nordeste – recuou devido às fragilidades fiscais provocadas
pela pandemia. E o ativismo político da Justiça liquidou com o grande
articulador da frente, Ricardo Coutinho, ex-governador da Paraíba.
Dono
dos melhores diagnósticos sobre a crise, Ciro Gomes padece dono mesmo
voluntarismo que o marcou a vida toda.
Em
todo caso, à medida em que as esquerdas não conseguem apresentar uma proposta
competitiva, e a direita se perde em devaneios com Huck, há um espaço para o
novo conhecido, o bonapartismo de Ciro.
PEÇA
6 – SEM CONCLUSÕES
Vive-se
um momento totalmente inconclusivo. A década de 2010 legou um país destroçado,
com as instituições desmoralizadas, sem lideranças expressivas. Não existe
vácuo na política mas também não existe, à vista, nenhuma instituição em
condições de empalmar o poder – o que é bom, pois poderia significar a
consolidação da ditadura em mãos de um poder.
Mas,
como não existe vácuo na política, resta aguardar movimentos mais concretos
para um xadrez mais assertivo. O agravamento da crise, misturando segunda onda
do Covid-19, fim do auxílio emergencial, pressão de custos, certamente colocará
fatos novos na mesa.
Espera-se
que para o bem do país.
Do GGN
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