Foto: Rovena
Rosa/Agência Brasil
Em artigo publicado ontem (4) no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo, o
professor da FGV Direito Rio Ivar Hartmann defende que a legitimidade do Poder
Judiciário depende também não só das sentenças, mas “daquilo que se dá fora dos
autos”.
Para o
pesquisador, os juízes devem se manter como observadores “rigorosamente
passivos”das negociações entre Executivo e Legislativo, ressaltando que a
“atual demanda por exposição e transparência do Judiciário não tem
precedentes”.
Como um dos
exemplos, Hartmann cita Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, relembrando
as diversas vezes nas quais o ministro atuou como ator político. “Declarações
excessivas à imprensa, na hipótese mais branda, são ilegais por anteciparem seu
julgamento; na mais grave, provocam o descrédito da instituição e dos colegas”,
afirma.
Da Folha - Gilmar
Mendes é contraexemplo da discrição esperada do Judiciário
IVAR
HARTMANN
Quando
questionado sobre o processo que pode cassar a chapa Dilma-Temer no Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), seu relator, ministro Herman Benjamin, nada diz.
Afirma estar em "silêncio beneditino".
Há cerca de
um ano, Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi criticada em
conversa grampeada de investigados da Lava Jato porque "não deu o negócio
do Lula [PT]". Apesar de suposta intervenção de Dilma Rousseff (PT), a
ministra negou pedido para afastar do juiz federal Sergio Moro a investigação
sobre o ex-presidente.
Ambos os
magistrados adotam comportamento essencial em tempos de normalidade e decisivo
durante período de crise política aguda. Sabem que a legitimidade do Judiciário
depende não apenas da qualidade e da celeridade de suas sentenças mas também
daquilo que se dá fora dos autos.
Infelizmente,
a parcialidade de magistrados em todo o país tem sido cada vez mais
questionada, pois certos juízes não cumprem duas regras básicas. Primeiro, não
se pode antecipar a posição pessoal sobre o mérito de questões que acabam
judicializadas. Segundo, deve-se permanecer como observador rigorosamente
passivo de negociações no Executivo e no Legislativo.
A primeira
regra parece mais simples. Antigamente, bastava ao juiz não conceder entrevista
sobre questões que poderiam acabar na sua vara ou em seu tribunal. Essa
proibição está na lei que fixa o código de conduta dos magistrados.
Um exemplo
recente ilustra bem o problema. Há cerca de dez dias, esta Folha informou que o
STF, contrariando seu entendimento, poderia deixar Lula solto mesmo após
condenação em segunda instância. O ministro Celso de Mello logo emitiu nota
informando como se posicionaria no caso. Ao adiantar seu entendimento,
prejudicou sua própria imparcialidade –farão diferença os argumentos que defesa
e acusação venham a trazer?
Outros
exemplos tendem a ser mais complexos. A atual demanda por exposição e
transparência do Judiciário não tem precedentes. Falar à imprensa passou a ser
apenas uma de muitas maneiras de interagir com a opinião pública.
Nos anos
1990, ainda que um ministro do STF decidisse dar uma declaração polêmica, o
fato dificilmente ganharia a capa dos jornais de grande circulação.
Hoje, os
brasileiros conhecem o poder decisivo de uma liminar que bloqueia o WhatsApp ou
de uma decisão que afasta o presidente da Câmara dos Deputados. Acompanham
esperançosos os processos criminais de figurões da política. Comparam seus
rendimentos com os contracheques dos juízes e avaliam se isso deveria ser pauta
de protesto nas ruas ou no Facebook.
Essa busca
de mais informação sobre a Justiça é satisfeita e estimulada por notícias que
chegam segundo a segundo, seja por veículos tradicionais, seja por novas
agências, seja por redes sociais.
PARA A
PLATEIA
No caso das
redes sociais, em particular, a via é de mão dupla. Transmitem o que se
escreveu ou se disse sobre os juízes, mas são também ferramenta que magistrados
usam para escrever e falar diretamente com o público. É saudável que os
cidadãos estejam mais interessados no que faz o Judiciário. Mais cobertura da
mídia traz mais transparência –mas também mais oportunidades para excessos.
Moro
aprendeu com a operação italiana Mãos Limpas a importância do apoio popular
para combater a corrupção sistêmica. Quando sente necessidade, usa a internet para
falar diretamente com os brasileiros, estimulando o clamor que acaba
legitimando a Lava Jato.
Mas nem
sempre há cálculo estratégico. O juiz de Brasília que suspendeu a nomeação de
Lula como ministro no ano passado publicou em seu perfil foto com adesivo de
Aécio Neves (PSDB-MG), conclamou os amigos a "ajudar a derrubar a
Dilma" e fez manifestações em uma rede social relacionadas ao caso no qual
mais tarde deu a liminar.
Assim também
a juíza que proibiu o acampamento de defensores do ex-presidente durante seu
interrogatório em Curitiba. Em seu perfil, ela compartilhava postagens do
Movimento Brasil Livre e aplaudiu a condução coercitiva daquele que os afetados
por sua decisão queriam prestigiar. Ambos restringiram o acesso ao seu perfil
no Facebook quando viraram notícia, mas as manifestações ainda assim foram
amplamente disseminadas.
Esses e
outros casos ajudam a alimentar a crença de que o PT é perseguido pela Justiça.
Isso põe em questão as decisões não só desses dois magistrados mas também as de
seus colegas. A impressão de que juízes decidem com um viés partidário está
entre os maiores problemas da primeira instância.
Nos
tribunais superiores, existe outro. Há um tipo específico de uso da imprensa
que permite a ministros quebrar a segunda regra básica: não virar ator
político.
Durante o
mensalão, os jornais repercutiam as falas dos magistrados nos autos. Os
julgadores eram observados, descritos, criticados e até santificados por suas
decisões. Os ministros, porém, nem sempre se contentam em ser objeto passivo de
observação. Alguns buscam os jornalistas e ativamente dialogam com os
observadores. A imprensa repercute mais suas entrevistas que suas sentenças.
O projeto
Supremo em Números utilizou a base de dados Media Cloud da Escola de Matemática
Aplicada da FGV. Ela cataloga diariamente, entre outras publicações, todas as
notícias online dos grandes veículos de imprensa do país. Identificamos todas
as menções a ministros do STF nos últimos seis meses.
Os dias de
maior repercussão foram causados pela chocante morte de Teori Zavascki e pela
divulgação da chamada "lista do Fachin", com nomes de investigados a
partir da delação da Odebrecht.
Esses
eventos excepcionais fazem com que os dois ministros sejam mais citados do que
qualquer outro no período. Entre os demais, não está em primeiro lugar a atual
presidente, ministra Cármen Lúcia. É Gilmar Mendes quem mais aparece –e isso
ainda não diz tudo.
GILMAR
MENDES
Para quase
todos os ministros, o dia com o maior número de citações na mídia foi resultado
de uma decisão judicial –ou de um trágico acidente. É o caso da liminar de Luiz
Fux suspendendo o trâmite das dez medidas contra a corrupção no Congresso ou do
pedido de vista de Dias Toffoli em julgamento sobre a linha sucessória da
Presidência.
Mendes é
diferente. Seu dia mais midiático ocorreu quando criticou projeto de lei que
mudaria as regras sobre prestação de contas de partidos. Caso a proposta
avançasse, provavelmente seria questionada no STF, onde Mendes deveria atuar
como julgador imparcial.
No segundo
dia de maior visibilidade, o ministro se reuniu com Michel Temer (PMDB) e os
presidentes da Câmara e do Senado para discutir reforma política. Isso apesar
de ser Cármen Lúcia a atual autoridade máxima e representante do Judiciário
nacional.
No terceiro,
as notícias são de um evento acadêmico que Mendes organiza com o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e com João Doria (PSDB), prefeito de São Paulo,
bem como sua afirmação de que a Justiça do Trabalho é um "laboratório do
PT".
No quarto
dia de maior número de citações, Mendes acusa a Procuradoria-Geral da República
de crime por ter supostamente vazado nomes de políticos alvo de pedido de
investigação no Supremo. A lista segue.
No caso de
ministros de tribunais superiores, declarações excessivas à imprensa, na
hipótese mais branda, são ilegais por anteciparem seu julgamento; na mais
grave, provocam o descrédito da instituição e dos colegas. Além disso, podem
servir para dar poder excessivo a um ministro que já conta com fortes
prerrogativas de função, facultando a essa pessoa atuar de forma privilegiada
no campo da negociação política.
Há ainda os
exemplos mais óbvios dessa atuação política. Há poucos dias, revelou-se o
conteúdo de telefonema no qual Aécio Neves discutia com Gilmar Mendes
estratégia para o sucesso da tramitação do projeto de lei de abuso de
autoridade.
O contraste
é claro entre Rosa Weber, criticada em um grampo por não jogar o jogo, e
Mendes, interlocutor de conversa em que demonstra buscar o protagonismo nesse
jogo. Como é possível esperar imparcialidade de Mendes se a nova lei de abuso
de autoridade for questionada no STF?
Os novos
tempos da relação entre a opinião pública e o Judiciário trazem novas formas e
oportunidades para que magistrados tomem a iniciativa de se comunicar com a
população. Mas nem todos esses novos meios devem necessariamente ser
aproveitados.
Não sabemos
se os exemplos dos juízes de Brasília e Curitiba são apenas casos isolados ou
se representam tendência nacional. Certo é que, em tempos de mais transparência
e novos meios de comunicação, condutas republicanas como as de Herman Benjamin
e Weber são ainda mais importantes.
É preciso
poder acreditar que o Judiciário será o fiel da balança na iminência de uma
segunda troca de presidente da República em 12 meses. É preciso poder acreditar
que os tribunais serão imparciais ao enfrentar a constante judicialização da
política e os inúmeros processos criminais de autoridades. O sistema não
funciona se os juízes tiverem partido. Infelizmente, a proatividade mal
direcionada de alguns tem jogado uma sombra sobre todos.
IVAR
HARTMANN, 32, é professor e pesquisador do Centro de Justiça e Sociedade da FGV
Direito Rio.
Do GGN
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