O
Congresso Nacional tornou-se um campo de caça aos direitos dos povos indígenas
Foto: Celso Maldo
Índios, direitos humanos e democracia
no Brasil
O
Congresso Nacional tornou-se um campo de caça aos direitos dos povos indígenas,
o que ficou evidente na CPI da Funai e Incra, que buscou criminalizar suas
lideranças e seus aliados no Estado, no Ministério Público, nas igrejas e nas
ONGs, além de propor a extinção da própria Funai e medidas que buscam
inviabilizar as demarcações e os direitos dos índios
Os
povos indígenas estiveram sempre presentes na história do nosso país, cujo
Estado nasceu e respectivo território se desenvolveu sobre as instituições e
territórios milenares dos povos originários. São 517 anos de história nacional
sobreposta e em conflito permanente com 12 mil anos de diferentes histórias de
centenas de povos. Documentos da Colônia, do Império e da República são
testemunhos dessa tensão contínua e das tentativas cíclicas de se construir uma
convivência, prevista juridicamente e de fato, entre sociedades e culturas
diferentes. Resultado de uma convivência entre sociedades muito desiguais em
poder de exploração econômica e destruição letal, de uma estimativa de cerca de
6 milhões de pessoas pertencentes a mil povos em 1500 temos hoje, pelo Censo
Geral do IBGE de 2010, 817.963 indígenas, de 305 povos, falantes de 274
línguas.
Durante
a última ditadura civil-militar (1964-1985), a burocracia estatal chegou a
levantar a possibilidade de uma “solução final”, com a extinção completa dos
povos indígenas no Brasil. Embora tais planos não tenham sido levados à
prática, os grandes projetos econômicos e de infraestrutura na região
amazônica, principalmente, foram a causa do extermínio e do genocídio que
incidiram sobre inúmeros povos. A luta contra a ditadura também teve o
protagonismo indígena, na forma de assembleias e mobilizações regionais e
nacionais em torno da defesa do direito ao território, as quais ensejaram
inclusive um processo organizativo para dar conta de uma agenda de denúncias e
reivindicações.
O
acúmulo de experiências de luta, de construção de propostas políticas e de
criação de alianças entre os diferentes povos, e destes com segmentos da sociedade
nacional, permitiu que os povos indígenas, através de centenas de
representantes, tivessem uma participação significativa no Congresso
Constituinte, acompanhando subcomissões, comissões, sessões plenárias e
audiências públicas, e que ao final contribuíssem de maneira determinante para
a consolidação dos direitos indígenas nos artigos 231 e 232 da Constituição
Federal de 1988.
O
texto constitucional é uma vitória histórica, pois muda a orientação da relação
do Estado nacional com os povos indígenas, superando a perspectiva
integracionista para uma perspectiva de respeito aos seus territórios,
culturas, línguas, tradições e modos de ser, viver e se reproduzir como povos
etnicamente diferenciados. Além de ser um texto em sintonia com avanços nos acordos
internacionais, a nova Constituição tornou-se referência para as lutas
indígenas na América Latina e um novo patamar para a construção de políticas
públicas específicas em saúde, educação, meio ambiente, produção e gestão
ambiental e territorial.
Com
base na Constituição Federal foram desencadeados novos processos de
reconhecimento, identificação, demarcação e homologação das terras indígenas,
que se caracterizam por serem bens da União de usufruto exclusivo dos
diferentes povos. Durante os anos 90, ao longo dos governos dos presidentes
Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, com o apoio de
recursos internacionais da ONU, avançou-se na demarcação das terras indígenas
na região amazônica, principalmente do Território Ianomâmi e de muitos outros,
sempre com a participação das próprias comunidades e organizações indígenas
locais. Um episódio marcante ocorreu em abril do ano 2000, em Porto Seguro,
Bahia, quando das comemorações pelos 500 anos do Brasil. Os povos indígenas,
com 3.600 representantes de cerca de 180 povos, ocuparam a região com as
contracomemorações chamadas “Brasil, Outros 500” e, juntamente com quilombolas
e movimentos sociais de todo o país, exigiram um novo modelo de
desenvolvimento, baseado nos direitos dos povos indígenas, dos quilombolas e da
classe trabalhadora do campo e da cidade. A repressão brutal do governo FHC que
se abateu sobre os milhares de participantes daquela mobilização acabou por
revelar uma sociedade ainda fortemente excludente e autoritária, teve amplo
impacto negativo na mídia internacional e despertou para a luta pela demarcação
dezenas de povos indígenas do sul da Bahia e de toda a região Nordeste. A
partir desse evento traumático e com grande carga simbólica, as lutas indígenas
e as alianças dos povos indígenas com segmentos excluídos da sociedade nacional
ganharam um novo impulso e novas perspectivas.
Durante
os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a questão indígena
teve avanços em alguns aspectos, principalmente no que diz respeito à
participação dos povos indígenas na construção e monitoramento das políticas
públicas específicas, mas poucos avanços na questão territorial. Uma polêmica
que marcou esse período foi a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol,
que foi motivo de uma ação junto ao Supremo Tribunal Federal. Nessa ação era
contestada a demarcação da terra indígena de forma contínua; era contestada a
demarcação em faixa de fronteira “por ameaçar a segurança nacional” e “por
criar a possibilidade de um separatismo indígena” e era defendida a “alta
produção agrícola” dos invasores da terra indígena. O STF reconheceu a
constitucionalidade da demarcação feita pelo presidente Lula e determinou a
retirada dos invasores, embora tenha definido dezenove condicionantes, válidas
apenas para Raposa Serra do Sol, que constrangeram os indígenas por serem
limitadoras ao usufruto pleno das comunidades do seu território original.
Durante
o governo Lula os povos indígenas avançaram na interlocução com o Estado
brasileiro, com a realização da I Conferência Nacional dos Povos Indígenas em
2005, com a criação da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) em
2006, com a criação da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) em 2010,
com a criação do Programa Nacional dos Territórios Etnoeducacionais, com o
estabelecimento de cotas (com programas de acesso e permanência) para indígenas
nas universidades públicas e programas de acesso das comunidades a diversas
políticas públicas, como proteção ambiental e produção de alimentos. A questão
territorial, no entanto, permaneceu com poucos avanços, devido ao forte lobby
das forças conservadoras dentro do próprio governo federal, assim como com a
judicialização dos processos de demarcação e homologação das terras indígenas.
Nesse período, por exemplo, pouco avanço teve a demarcação do Território
Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, cujo drama humanitário permaneceu e se
agravou a cada ano, fazendo com que esse povo se transformasse no mais atingido
em seus direitos humanos com assassinatos e ameaças de morte às lideranças,
agressões às comunidades, suicídios e atropelamentos dos indígenas obrigados a
viver nas margens das estradas.
Durante
o mandato e meio da presidenta Dilma Rousseff, os avanços foram ainda mais
tímidos, novamente com destaque para a participação indígena em espaços de
interlocução com o Estado e de controle social e muito pouco avanço na agenda
de demarcação e homologação dos territórios. Nesse sentido é importante
destacar a transformação da Comissão em Conselho Nacional de Política
Indigenista em 2015, agora um órgão de Estado, e a criação da Política Nacional
de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI) em 2012, além da
realização da I Conferência Nacional de Política Indigenista em 2015. Um forte
motivo de tensionamento entre o governo federal e as lideranças, povos e
organizações indígenas foi a edição da Portaria no 303 da Advocacia-Geral da
União (AGU), que internalizava as dezenove condicionantes de Raposa Serra do
Sol nos procedimentos da AGU, inclusive para os procuradores da Fundação
Nacional do Índio (Funai), sendo que tais condicionantes ainda estavam sob
embargos declaratórios no STF.
Essa
portaria inviabilizou, inclusive, as tentativas do governo federal em
regulamentar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
sobre o direito à consulta prévia e informada, que significaria certo
empoderamento dos povos, comunidades e organizações indígenas frente ao
planejamento e realização de empreendimentos que atingissem seus territórios ou
frente a decisões administrativas e legislativas que impactassem seus
territórios ou suas culturas. Os indígenas se recusaram a construir uma
regulamentação da Convenção 169 enquanto a Portaria no 303 não fosse revogada,
o que nunca ocorreu. Um outro fator de forte tensão dos povos indígenas com o
governo Dilma foi o planejamento e implementação das hidrelétricas na região
amazônica, a começar pela hidrelétrica de Belo Monte e as hidrelétricas do rio
Tapajós, em contraste com uma quase paralisia dos processos de reconhecimento
territorial, dos processos de demarcação e homologação das terras indígenas.
Apesar
desses retrocessos, na gestão da presidenta Dilma foram realizados poucos, mas
importantes, processos de homologação de terras indígenas, como a Terra
Indígena Kayabi, no Mato Grosso, e processos de desintrusão (retirada de
invasores), como da Terra Indígena Xavante de Marãiwatsédé, também no Mato
Grosso, uma dívida histórica do Estado brasileiro, e da Terra Indígena
Awá-Guajá, no Maranhão, onde vive um povo indígena em situação de isolamento
voluntário e de extrema vulnerabilidade frente aos madeireiros da região. O
golpe parlamentar que foi executado contra a presidenta Dilma em 2016 teve como
principais agentes deputados e senadores ruralistas, articulados com os
interesses do agronegócio e do latifúndio mais atrasado do país. Por essa
razão, a agenda dos direitos indígenas, assim como dos direitos humanos de
maneira geral, encontra-se praticamente interditada e com novos golpes que
configuram um retrocesso permanente. As demarcações de terras indígenas estão
paralisadas; a proteção aos povos em situação de isolamento voluntário foi
desmobilizada; o órgão indigenista Funai encontra-se quase inviabilizado pela
falta crônica de recursos humanos e financeiros; as desintrusões não são mais
realizadas; as parcerias com organizações indígenas, com organizações não
governamentais ou com outros órgãos de Estado para a defesa dos direitos
indígenas, quase deixaram de existir.
O
Congresso Nacional tornou-se um campo de caça aos direitos dos povos indígenas,
o que ficou evidente na CPI da Funai e Incra, que buscou criminalizar suas
lideranças e seus aliados no Estado, no Ministério Público, nas igrejas e nas
ONGs, além de propor a extinção da própria Funai como órgão de proteção dos
povos indígenas e uma série de medidas que buscam inviabilizar as demarcações e
os direitos dos índios. O principal instrumento que os ruralistas buscam
aprovar no Congresso Nacional é a PEC 215 que, além de retroceder em todos os
direitos já reconhecidos dos povos indígenas, pretende estabelecer a revisão e
anulação de todas as terras indígenas demarcadas até hoje. A PEC 215
encontra-se tramitando na Câmara dos Deputados e pode a qualquer momento ir a
plenário. O golpe parlamentar, no que diz respeito aos direitos indígenas e aos
direitos humanos, apresenta-se como uma espécie de “vingança de classe” com
relação à Constituição de 1988, revelando que as elites não aceitaram os
avanços civilizatórios daquela Carta nem seus desdobramentos institucionais em
termos de criação de políticas públicas nas últimas quase três décadas, sendo
este momento o da busca de anulação de tais avanços e do atendimento das
exigências mais radicais do latifúndio e do agronegócio.
A
defesa dos direitos indígenas hoje se coloca, portanto, na perspectiva da
defesa dos direitos humanos e da defesa da própria democracia. Não existe
democracia num país onde os direitos de seus segmentos mais vulneráveis não
estão garantidos; nesse sentido, o respeito ou não aos direitos indígenas são,
ao lado dos direitos dos quilombolas e dos povos tradicionais, os melhores
indicadores do nível de democracia alcançado pela sociedade brasileira. Povos
que preexistiram ao Estado e à sociedade nacionais, a eles não pode ser dado o
mesmo tratamento que foi dado pela metrópole à colônia séculos atrás, baseado
no genocídio, no etnocídio e na incorporação forçada de territórios à lógica
mercantil.
Povos
resistentes, sobreviventes de ditaduras, de ciclos de violência do Estado e das
frentes de expansão econômica, são sujeitos de direitos e protagonistas
políticos, portadores de culturas e modos de ser e de se relacionar, dentro das
comunidades e com a natureza, que podem se constituir em novos paradigmas para
a sociedade brasileira. Suas histórias milenares nos enriquecem como povo e nos
tornam mais aptos para a construção do futuro, no sentido inverso das
características socialmente disruptivas e suicidas da nossa cultura atual e da
lógica, esta sim selvagem, do capitalismo financeiro na sua fase neoliberal.
A
defesa dos direitos indígenas deve estar articulada com um projeto de país
democrático e respeitoso de sua sociodiversidade. Trata-se de não voltar atrás
em nenhum direito humano e em nenhum direito indígena reconhecido, pelo contrário,
devemos avançar e aprofundar nas regulamentações constitucionais, nas medidas
legislativas, nas políticas públicas e nas decisões administrativas que
garantam o direito fundamental à terra, ao território e à autonomia dos povos
indígenas na participação política no presente e na construção de seu futuro.
Foi o protagonismo indígena no Brasil que garantiu que centenas de povos
milenares chegassem até os dias de hoje, com suas identidades e com sua imensa
riqueza cultural. Esse mesmo protagonismo deve ser reconhecido e fortalecido
pela luta democrática do conjunto da nossa sociedade por um novo país livre,
justo e igualitário, pois estes povos têm muito a nos ensinar sobre liberdade,
justiça e igualdade.
Paulo
Maldos é psicólogo, conselheiro do Conselho Federal de Psicologia (CFP),
trabalhou com povos e organizações indígenas de todo o país; foi secretário
Nacional de Articulação Social da Secretaria Geral da Presidência da República
(2010-2014) e secretário Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos
(2015-2016)
Do
GGN
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