Aumenta
quantidade de agrotóxicos liberados pela Anvisa; Mogi tem programa para
conscientizar agricultores — Foto: Reprodução/TV Diário.
Em
2020 e agora em 2021, anos em que vivemos a pandemia, e com ela a pior crise
econômica e humanitária a nível planetário, nós no Brasil presenciamos
sucessivas safras recordes de grãos. O feito é noticiado, ou, mais do que isso,
alardeado, comemorado, exibido como um troféu. E os números, impressionantes,
estão ainda em crescimento: “A safra nacional de grãos deve atingir mais um
recorde, o terceiro consecutivo, neste ano, com 260,5 milhões de toneladas, um
crescimento de 2,5% em relação a 2020”. Importante seria alardear, junto a
esses números, outros: qual o montante da fortuna arrecadada com as exportações
de grãos, dado o câmbio atual? quantos brasileiros se beneficiam dessa fortuna?
Mas
parece não haver nessa falta nenhum incômodo, basta aos brasileiros ter notícia
dessa “nossa riqueza”.
A
propaganda do agronegócio, de uma campanha já antiga, de 2017, circulou
fortemente na Rede Globo no ano passado e início deste: “Agro é Pop, Agro é
Tech, Agro é tudo”. Sim, é uma propaganda, mas é de responsabilidade de uma
determinada empresa jornalística, que, em sua difusão por todo o imenso
território, denota de maneira flagrante esse traço subdesenvolvido e
antidemocrático de nossa Comunicação. A campanha intitula-se “Agro: a
Indústria-Riqueza do Brasil”, numa significação que afirma sem rodeios a
agricultura como uma indústria, aliás a mais rica – e isso é mesmo certo,
depois do desmonte da indústria brasileira que a Lava-Jato promoveu, atingindo
diversos setores industriais.
De
acordo com Roberto Schmidt (diretor de marketing da TV Globo), o objetivo
da iniciativa é conectar o consumidor com o produtor rural e ao mesmo
tempo desmistificar a produção agrícola aos olhos da sociedade urbana – dado o
conjunto da obra, “desmistificar” deveria ser mostrar a agricultura não só como
uma indústria, mas como uma indústria moderna, confrontando um imaginário
de rural como não-tecnológico, atrasado. “Queremos mostrar que a riqueza gerada
pelo agronegócio movimenta os outros setores da economia”, salientou,
acrescentando que: “a ideia é fazer com que o brasileiro tenha orgulho do
agro”.
Não
tenho dúvidas: a ideia é fazer com que o brasileiro tenha orgulho de algo que
seria “do Brasil”, porém, algo do qual ele não necessariamente se beneficia,
pelo menos de maneira direta ou efetiva. Assim, cabe perguntar: e o orgulho do
brasileiro em relação às universidades, à ciência, ao SUS, por exemplo? Há em
curso processos de destruição e/ou de deterioração, que atingem tudo o que pode
tirar da miséria o brasileiro. E o que sabe disso o brasileiro que deve ter
orgulho da indústria-riqueza?
A
destruição atinge os direitos trabalhistas, aprofundando a direção neoliberal
no atual governo. Atinge o direito à terra, no percurso mesmo dos incêndios e
invasões ilegais em terras da União, no cerne da guerra política, econômica,
cultural uma vez posta no “meio ambiente” e nunca cessada. E atinge o Sistema
de Saúde e a educação básica, para ficar nos serviços públicos mais
fundamentais. Se a pandemia, como dizem, afeta “desigualmente” o brasileiro,
afeta diretamente o trabalhador assalariado ou informal, o microempresário,
aqueles que mais dependem não só do “livre comércio”, mas também de todo um
sistema público, hoje estressado, sucateado ou desmoronando. Portanto, cresce
hoje absurdamente a população refém dos auxílios – o mínimo de um mínimo a um
espetacular número de brasileiros. Mas a pandemia não é ela mesma a responsável
direta por esse crescimento da miséria no país, senão o próprio contexto
histórico-político, coroado pelas piores decisões no seu enfrentamento.
O
que dizer de um governo que, na crise sanitária que se instalou com a pandemia,
troca um ministro da Saúde médico, e outro em seguida, instalando um general
que assume que não entende nada do SUS? O que se disse a respeito na mídia foi
muito, muito pouco. Muito mais poderia ser dito a respeito da decisão do
governo de deixar o vírus correr solto.
Embora
o SUS no momento esteja muito presente nas pautas televisivas e esteja sendo
referido por comentaristas como exemplo mundial de sistema público de Saúde,
parece-me que falta à população informação com relação ao que existe de fato
para que esse funcionamento se dê, em termos de uma estrutura pública de
Educação superior, Ciência e Saúde — estruturas que são visadas como possíveis
terrenos de encampação pelo setor privado. Então: propagandeia-se um orgulho
pela safra recorde e os profissionais de saúde, entre outros funcionários
públicos, devem ter seus salários congelados. E os profissionais da saúde e da
educação do sistema público são ainda e de novo exaltados enquanto heróis, em
seu sacrifício diário – perversa ladainha das mais antigas nesse
país.
O
SUS faz parte de uma política por meio da qual uma atenção mínima à população
deu-se a partir de uma estrutura que não é pequena nem simples, nem pode ser
simplificada, pois demanda de diversas áreas e demandou de fato uma série de
ações e incentivos díspares, que inclui a estruturação e provisionamento, não
no ideal, certamente, do Sistema Único de Saúde para atingir, nesse território
gigante, o maior número possível de cidadãos – mas passa também pela pesquisa
populacional (IBGE) e pelo sistema de monitoramento ambiental do território da
União (INPE), ambos atacados/desmontados pelo governo federal atualmente.
E
ainda pela legislação ambiental, que foi investida nesses últimos anos e é das
mais atualizadas frente ao contexto internacional. Com ela, assegura-se o
direito à terra para populações que vivem de forma coletiva, por exemplo em
regime de extração sustentável. A legislação ambiental, como sabemos, tem sido
escancaradamente inoperada (com o desmonte do IBAMA e ICMBio, o perdão de
multas, a regularização fundiária). Falta dizer que essa inoperância hoje da
legislação ambiental no Brasil se dá na direção do melhor aproveitamento do
capital, desse mundo financeiro que reproduz o dinheiro à custa de vidas, da
fome, de vidas miseráveis ou perdidas ou iludidas.
Ocorre
que, no momento mesmo da safra recorde, a estrutura mínima de proteção à
população desse país, gigantesco, tem sido minada, tem sido golpeada,
escasseada, arrasada. O processo de destruição em curso foi visível em sua
gritante imagem nos inumeráveis incêndios florestais ocorridos no país,
criminosos, em que vislumbramos novamente, e sempre, um território rendido aos
interesses pífios de uma elite – mesmo que aparentemente sejam os chamados grileiros
a fazer o trabalho sujo da expansão agrícola. Além de uma mineração primitiva e
selvagem, que persiste na maior parte das vezes pela ilegalidade, também os
grandes negócios na agricultura têm na sua constituição as sucessivas
“legalizações” de terras que foram barganhadas, tomadas, ao destituíram delas
ou mesmo ou matar indígenas e caboclos, por exemplo – as “regularizações
fundiárias”.
O
“auxílio emergencial” é minguado e descontínuo e os outros auxílios vão se
escasseando ou talvez tornados um luxo, entre a parcela “mais afetada”, ou
seja, entre aqueles sujeitos que nada têm diante de um Estado que deve ter –
exigência do mercado, que tudo comanda – cada vez menos a oferecer a eles.
O
Estado, que se quer sempre cada vez mais mínimo, atuava minimamente na proteção
da população, graças a uma política nesse sentido que buscou atender no básico
a uma população enorme que se espalha nesse território gigantesco, com suas
especificidades regionais – os brasileiros, não?
Tais
questões passam pelos noticiários da imprensa tradicional, mas os “fatos
noticiados” na grande mídia não são destrinchados em uma perspectiva crítica
que os correlacione, e o que resta é a repetição de determinadas “conclusões”
como: a pandemia afeta de modo desigual a população, o presidente deve ser
afastado da gestão da pandemia, os remédios tais, tal, tal “não tem eficácia
comprovada”. Aliás, intrigante essa construção: dizer que “não tem eficácia
comprovada” deixa uma margem de possibilidade, um “pode-se ainda comprovar”. Melhor
seria dizer que comprovadamente não tem eficácia nenhuma contra a covid.
Hoje,
na cobertura da imprensa – falo em especial da televisiva –, chama atenção a
produção de uma imagem crítica ao governo, à custa de observações sobre a sua
inoperância na pandemia. As “conclusões” ocupam na emissão jornalística o lugar
dos seus silêncios sobre a cena política. Depois, a pesquisa de opinião pública
colhe os frutos, bem como as eleições. Portanto, tal circulação de “conclusões”
– digo conclusões tal o efeito sintético quanto aos fatos-alvo das notícias –
tampona uma crítica mais efetiva, funcionando na sustentação de um silêncio,
por exemplo, quanto à relação entre a produção de grãos, o desmonte do que é
público e a fome.
É
lado a lado ao desmonte do que é público, de tudo aquilo que pode beneficiar a
população, que as safras de grãos assumem sucessivos recordes, enriquecendo um
produtor que, em sua maioria, produz em grandes propriedades, remontando ao
histórico da grande plantação, o latifúndio, contando sempre com o financiamento
público de seus investimentos e, quanto ao exportador, contando ainda com a
isenção de impostos. Como pedir que tenhamos orgulho dessa produção tutelada
pelo Estado, nesse Estado que não deve mais dar o mínimo ao brasileiro?
Não
se identifica nas imagens da campanha “Agro é tech” uma entidade que a estaria
promovendo, o que coloca a Rede Globo como autora responsável. Porém, nesse
falar de uma aparente “agricultura generalizada”, justamente, não é difícil
identificar sobre qual produtor rural está se falando: é sim o produtor rural
das safras recordes, o produtor do agrobusiness, é o sujeito que
produz commodities, ou seja, um “agricultor” entre aspas pois o que produz
não é alimento, e sim mercadoria (dinheiro, capital). Daí que não haja espanto
algum que as safras recordes se deem no país que entra nesse momento numa
situação de fome calamitosa.
Ao
mesmo tempo em que propagandeia o agronegócio, a emissora mostra em suas
reportagens um governo ineficiente, nocivo, genocida, um ministro do meio ambiente
vendido. Bolsonaro esbraveja com os jornalistas, com destaque à Globo, e a
imagem de um jornalismo crítico se produzindo parece colar. No quadro de uma
crítica ao desastre que se instalou no país, sobretudo após as últimas eleições
federais, falam ministros do STF, fala o líder da Câmara dos deputados,
mostram-se cartas de repúdio, que se somam, junto aos pedidos de impeachment. E
comentaristas avaliam que o governo perde apoio, por isso, isso e isso.
Tendo
tudo sido exposto na televisão, a crítica parece estar sendo feita,
considerando esse papel de enorme responsabilidade da imprensa: a opinião
pública não é algo que está presente na população, de antemão, a qual a mídia
detecta com a pesquisa, mas algo que a própria mídia produz ao produzir indignação
ou produzir orgulho, ou manter silêncio.
Seria
o caso de compreender o silencio naquilo que é dito na emissão jornalística.
Com relação ao agronegócio, uma reportagem no
dia 24 de fevereiro de 2021 no Jornal Nacional fala em 13 mil
empregos gerados pela soja, sem nenhum elemento crítico que possa colocar uma
tensão no dado numérico e seu “efeito informativo”. Seria preciso, se se trata
de um jornalismo mínimo, relembrar ao telespectador o caráter ínfimo desse
dado. Para começar, não são empregos, mas “bicos”: os postos de emprego
noticiados pela reportagem duram o tempo da colheita. Para terminar, o que são
13 mil postos de emprego numa economia que rendeu os milhões de sacas que a
soja propagandeia? Para se ter uma ideia do absurdo de se propagandear esses 13
mil postos de emprego, na agricultura familiar – a atividade agrícola que de
fato nos sustenta, nos alimenta – são 10 milhões de postos.i
Quanto
à promoção do agronegócio como indústria-riqueza do Brasil, o mais importante é
não só olhar para o incremento dessa produção agrícola enquanto produção de
mercadoria, que enriquece meia dúzia e encarece a oferta do alimento no mercado
interno. Mas principalmente considerar como isso está em oposição flagrante a
outras políticas como a política de fortalecimento da agricultura familiar e/ou
da agricultura orgânica; bem como à política das áreas protegidas enquanto
terras da União, que dá possibilidade de existência a outras culturas, em suas
formas de se relacionar com a terra, diversas sobretudo daquela voltada
unicamente para o rendimento monetário, que ignora a alimentação da população e
que esgota a terra. Temos alguns trabalhadores do campo, algumas populações
tradicionais que resistem produzindo alimentos, muitas vezes orgânicos, alguns
destes derivando do movimento MST criminalizado pela Rede Globo.
Seria
o caso, quanto à reportagem mencionada, de se questionar se se pode
considerar strito sensu ser parte de uma prática de jornalismo,
embora o fato de inscrever no jornal televisivo mais destacado do país possa
assim significá-la. Há, no meio jornalístico, o termo “matéria paga”. No
silêncio em torno do número (13 mil) sobre os empregos no âmbito do agronegócio
(um número que não diz nada no contexto nacional), o jornalismo da Globo
escancara sua relação com esse mesmo governo genocida que é criticado pela
gestão.
DCM.
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