Já
disse, e repito hoje: não sou um sonhador. Cético de temperamento, parece-me
até meio ridícula, ligeiramente demagógica e sentimental, a frequente
referência a sonhos e à necessidade de sonhar. E, no entanto, …
Manoel
Bomfim, um dos grandes pensadores brasileiros (injustamente esquecido como são
muitos grandes brasileiros – enquanto, diga-se de passagem, não poucos trastes
e mediocridades são celebrados intensamente), Bomfim dizia que uma nação
precisa inventar os seus próprios sonhos, sonhar os seus sonhos plausíveis.
Sonhos
plausíveis – inspirados de alguma forma, ainda que tênue ou não tão evidente,
na realidade histórica e atual da nação. Temos que sonhar nossos sonhos,
sonhados por nós, cultivar nossas próprias imagens, nossas próprias noções de
beleza, verdade e valor, dizia ele por outras palavras.
Bonito.
Mas aí é que se abre o alçapão. Sonhos podem ser perigosos. Certo tipo de
sonho, justamente os plausíveis que desejava Bomfim. O sonho possível carrega
em si a possibilidade da decepção e do sofrimento.
E,
por essa via, chego ao verdadeiro assunto desta pequena crônica – um outro
gênio da nossa raça, este verdadeiramente monumental. Refiro-me, leitor, ao
grande, imenso, gigantesco Fernando Pessoa. A poesia, como sabemos, resiste
tenazmente à tradução. Se Pessoa tivesse escrito em francês ou inglês (até
escreveu nesta última língua, mas pouco), seria conhecido e venerado no planeta
inteiro. Ele deixa na poeira, a meu ver, muitos luminares da literatura
francesa ou anglo-americana. Quantos deles parecem realmente minúsculos ao lado
do poeta português!
Não
só por sua poesia, que é fulgurante, mas também por sua prosa. E dela retiro
uma observação acurada sobre dois tipos de sonhos. Vamos passar a palavra a ele
diretamente. Diz Pessoa, ou o heterônimo Bernardo Soares, no Livro do
Desassossego:
“Tenho
mais pena dos que sonham o provável, o legítimo, e o próximo, do que dos que
devaneiam sobre o longínquo e o estranho. Os que sonham grandemente, ou são
doidos e acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores simples,
para quem o devaneio é a música da alma, que os embala sem lhes dizer nada. Mas
o que sonha o possível tem a possiblidade real da verdadeira desilusão. Não me
pode pesar muito o ter deixado de ser imperador romano, mas pode doer-me o nunca
ter sequer falado à costureira que, cerca das nove horas, volta sempre à
esquina da direita. O sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva
dele, mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a própria vida e
delega nela sua solução. Um vive exclusivo e independente; o outro submisso das
contingências do que acontece.”
Maravilhoso,
não? A relação ambivalente com o sonho permeia a sua obra, também a poética.
Por exemplo, no lindo poema Manhã dos outros!, que sei de cor e cheguei a
tentar, quando morava em Washington, traduzir para o inglês para benefício de
alguns amigos estrangeiros:
“Manhã
dos outros! Ó sol que dás confiança / Só a quem já confia! / É só à dormente, e
não à morta esperança / Que acorda o teu dia.”
E
aí vem o verso cintilante:“A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo / Todo
sonho vão, / Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo / e a ter coração. A
esses raias sem o dia que trazes, ou somente/ Como alguém que vem/ Pela rua,
invisível ao nosso olhar consciente, / Por não ser-nos ninguém.”
Em
inglês, ficou assim o verso central:
“To
those that dream by day and dream by night, knowing / that all dreams are vain/
But go on dreaming, just to feel what it ́s like to be alive/ And to have a
heart” Falei em “amigos estrangeiros”.
Não
queria dar pinta de quem explora a poesia para fins espúrios e extrapoéticos.
Mas a verdade é que a tentativa de tradução foi para uma namorada estrangeira,
linda, linda, mas por desgraça totalmente ignorante da bela língua portuguesa.
Mas
volto ao poema. Vê-se, claramente, que a morta esperança não está tão morta
assim. E que continua sonhando de dia e de noite, sonhando sempre, mesmo
declarando todo sonho vão, por saber que a vida e o coração deixam de existir
propriamente sem a capacidade de sonhar.
Já
estou resvalando para uma defesa meio ingênua do sonho. Na verdade, o mais
interessante, tanto no texto como no poema de Pessoa, é o embate, dentro da
mesma alma, entre o impulso de sonhar e a resistência a ele. Ou em outros
termos, talvez mais precisos: o conflito entre a vontade de sonhar e a
incapacidade de fazê-lo plenamente, com o coração inteiro. A sua obra está
eivada de paradoxos ou hesitações desse tipo, sempre muito carregadas de
conotações emotivas.
Dou
outro exemplo, também retirado do Livro do Desassossego, este do âmbito da
política, sobre a dualidade sincero/insincero ou ilusão/realismo prático:
“O
governo do mundo começa em nós mesmos. Não são os sinceros que governam o
mundo, mas também não são os insinceros. São os que fabricam em si uma
sinceridade real por meios artificiais e automáticos; essa sinceridade
constitui a sua força, e é ela que irradia para sinceridade menos falsa dos
outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do estadista. Só aos poetas
e aos filósofos compete a visão prática do mundo, porque só a esses é dado não
ter ilusões. Ver claro é não agir.”
Raramente
encontrei um parágrafo tão brilhante, tão iluminado por paradoxos certeiros!
Não são os sinceros nem os insinceros que lideram. A sinceridade do estadista é
fabricada e real ao mesmo tempo. E, contrariamente ao senso comum, a visão
realista do mundo não é do estadista, mas do poeta e do filósofo, cuja
clarividência, entretanto, impede a ação. Enfim, repito, um gênio da nossa
raça.
Talvez
esteja me perdendo do assunto inicial. Mas nem tanto. Em relação a sonhos, cabe
a mesma ambivalência. Os sonhos plausíveis de Bomfim são fonte de equívocos,
desastres e decepções. Mas sem eles o que sobra da vida? Ela não se esvazia?
Sonhar não pede coragem? E o ceticismo pode ser, no fundo, sintoma de perda de
vitalidade. Talvez uma forma de covardia.
E,
assim, continuamos. Mesmo sabendo ou proclamando todo sonho vão, vamos
sonhando, de dia e de noite, sonhando sempre, para sentirmo-nos vivendo e a ter
coração.
Uma
versão condensada desta crônica foi publicada na revista “Carta Capital” em 9
de julho de 2021. O autor é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de
Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento,
estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e
mais dez países. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil
não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro
no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de
vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março
de 2021.E-mail: paulonbjr@hotmail.com;Twitter: @paulonbjr;Canal YouTube:
youtube.nogueirabatista.com.br; Portal: www.nogueirabatista.com.br
Tijolaço.
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